‘Precisamos construir memória coletiva para que isso não se repita’, defende Miguel Roncato, ator pratense que participou de minissérie sobre a Boate Kiss

Nesta terça, a série alcançou a 6ª posição entre as dez mais vistas no mundo. Em entrevista à Studio, o ator pratense contou sobre sua preparação para interpretar "Felipinho"

A tragédia da Boate Kiss completou 10 anos na última semana e uma série de produções foram lançadas para reavivar a memória das vítimas e a realidade das famílias que até hoje enfrentam o luto e a dor da perda. Uma das produções feitas foi a minissérie original Netflix “Todo Dia a Mesma Noite”, adaptação da obra literária de mesmo título da jornalista Daniela Arbex.

Nesta terça-feira (31), a produção foi anunciada como a 6ª série de língua não-inglesa mais assistida do mundo, com mais de 28 milhões de horas assistidas entre os dias 23 e 29 de janeiro. Antes disso, em menos de 24 horas após o lançamento, a produção havia alcançado o primeiro lugar no Top 10 séries mais assistidas na Netflix Brasil.

Miguel e Fernando Roncato, atores, naturais de Nova Prata, integram o elenco da minissérie. Miguel interpreta o personagem Felipinho, inspirado na história real de Silvio Beuren Junior, o Silvinho, enquanto Fernando dá vida ao personagem Roberto, vocalista da Banda “Guapos Baladeiros”. A reportagem da Studio conversou com Miguel Roncato a respeito da produção da série e do impacto da produção para a sociedade gaúcha.

Irmãos Miguel e Fernando Roncato (Crédito: Divulgação / Fernanda Araújo)

Miguel conta que a oportunidade de atuar surgiu através da produção de elenco do projeto, e não esconde que sentiu uma responsabilidade enorme. “Ficamos honrados e também apreensivos pela dimensão da obra. A preparação foi intensa. Tínhamos muito material de pesquisa no livro da Daniela Arbex que inspirou o roteiro. O desafio era mesmo controlar o nosso envolvimento pessoal com o tema durante todo o processo de filmagens“, explica.

Memória local

A tragédia da Boate Kiss é considerada a maior da história do Rio Grande do Sul. Uma data em que todos se lembram o que estavam fazendo. Para Miguel, a percepção não era diferente. A memória sobre a tragédia ainda era muito forte e os sentimentos interferiam na preparação para a atuação. “Obter esse distanciamento da história e exercer neutralidade para viver o Felipinho foi o mais desafiador. E eu custei a encontrar esse lugar“, revela.

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Ao longo da produção da minissérie, documentada pelo Instagram (@_miguelroncato), o ator revelou que fez questão de conhecer os principais locais onde aquele 27 de janeiro de 2013 aconteceu, tendo visitado a Rua dos Andradas, os hospitais, o ginásio e a tenda que serve como memorial das vítimas. “Os rostos humanizam. Não são números. São pessoas. São famílias. São histórias. E elas importam. Através do meu personagem Felipinho, eu tive a imensa responsabilidade de homenagear a luz e o carisma que foi e sempre será Silvio Beuren Junior“, relatou.

Reviver a história

Miguel avalia ser o trabalho mais desafiador de sua carreira. Isso porque sua participação foi dividida em dois momentos, os que antecediam à tragédia e os que vivenciavam o fato. “Os momentos que antecederam à tragédia, aqueles em que precisava interpretar um Felipinho leve, feliz e cheio de sonhos, foram os momentos mais difíceis enquanto ator. Porque sabíamos o fim”, explica.

Uma série que é feita de extremos. Fomos das gargalhadas aos prantos. De jovens cheios de energia ao luto de uma vida. (…) A noite que começou em comemoração e terminou tragicamente. Adoraríamos que não tivesse passado de uma tragédia ficcional. Mas não. Ela ocorreu. E segue 10 anos sem resposta. (…) Não foi fácil fazer. Não foi fácil assistir. Não foi. Não é. Nunca será.

Trechos de publicações dos bastidores da gravação da série, feitos via Instagram (@_miguelroncato)

Para interpretar Felipinho, Miguel também realizou aulas de montaria à cavalo, já que seu personagem era um gaúcho tradicional, que vivia no campo. “Eu sou gaúcho. E poder levar essas imagens ao mundo, bate forte no meu coração“, afirma. Outra vivência importante no processo de laboratório do personagem, foi o contato com a família de Silvio Beuren Junior, principalmente com os pais dele, Marta e Silvio. Numa tarde de conversa, Miguel conheceu a história de um jovem sonhador e motivado, em meio aos causos contados numa roda de chimarrão com os familiares. “Conhecê-los foi como se eu tivesse conhecido o Silvinho. E sinto que o Felipinho foi uma forma de abraçá-lo“, conta.

Miguel e a família de Silvinho | Foto: arquivo pessoal/redes sociais

Para o pratense, a humanidade foi a chave para que o projeto fosse guiado pela sensibilidade com a história de cada vítima e cada família. “Há um lugar no nosso inconsciente que, “revivendo” aquilo, tem esperança de evitar o inevitável. É a nossa humanidade que, felizmente, não nos abandona. E é essa mesma humanidade que faz com que estejamos com tamanha aceitação popular com essa série. Estamos muito emocionados“, afirma.

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O alcance e seus impactos

A minissérie “Todo Dia a Mesma Noite” está disponível em mais de 180 países ao redor do globo. Para Miguel, esse é um dos principais ganhos da produção. “Todos vão ter a chance de conhecer nossa cultura. E, não menos importante, ninguém esquecerá das 242 vítimas daquela noite. Precisamos construir memória coletiva para que isso não se repita. E para que haja justiça“, reafirma.

Cena da adaptação produzida pela Neflix que reproduz vigília de familiares das vítimas | Foto: Guilherme Leporace / Netflix

Muito além do alcance da série em números de visualizações, Miguel reflete sobre a força do audiovisual e a potência que há na representação de um fato, para a própria construção de uma memória.

Ao assistir um projeto como esse, somos arrancados do sofá e arremessados para dentro daquela boate junto de todos aqueles jovens. Isso é forte. Isso emociona. Isso conecta as pessoas. O sentimento é unânime. Ali muito estava errado. E o errado começou muito antes daquela noite. Falhamos enquanto sociedade. E essa falha se arrasta há 10 anos neste caso. Que a gente consiga reabrir debates e mudar paradigmas que tanto nos corrompem diariamente. Essa famílias e essas vítimas precisam descansar“, encerra.

Com a série sendo a produção brasileira mais assistida no Top 10 da Netflix, Miguel reforçou em suas redes sociais o sentimento ao ver a obra alcançando proporções tão grandes. “Sim, é desesperador assistir. Um soco no estômago. (…) A memória machuca. Machuca saber que falhamos. Em vários âmbitos. Pessoal. Social. Nacional. Mas a luta segue. Por memória“, escreveu. A sociedade exige respostas e a história exige que casos como esse nunca sejam esquecidos, afinal, como pontuou o ator, nada é mais potente do que eternizar uma memória.

‘Todo Dia a Mesma Noite’: bombeiros tentam resgatar vítimas da Boate Kiss | Foto: Guilherme Leporace/Netflix

“O sargento Müller foi tomado pelo espanto ao observar a entrada do banheiro. Para se proteger da fumaça ou achar a saída, que ficara às escuras durante o incêndio, muitos jovens acabaram encurralados nos banheiros, único local onde uma luz de emergência permaneceu acesa. Muitos foram pisoteados. Todos morreram asfixiados. Diante da pilha de corpos, o sargento sentiu as forças de seus braços esvaírem. Percebeu que homens e mulheres haviam morrido entrelaçados uns aos outros, caídos entre as portas arrancadas dos sanitários individuais na tentativa alucinada de buscar ar na janela do basculante – que também estava lacrada. Nenhum treinamento o havia preparado para lidar com a dor que sentiu no momento em que se viu tomado pelo mais humano dos sentimentos: a compaixão. – Nós não salvamos ninguém – repetia, em choque. – Não salvamos ninguém.”

Trecho final do primeiro capítulo do livro Todo Dia a Mesma Noite: a história não contada da Boate Kiss, de autoria de Daniela Arbex. 242.

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